O que está em causa (2)
Há um ano quando a crise internacional chegou imunda e grossa, foi-me perguntado na rádio se isso não seria um grande azar para Sócrates. Eu respondi: bem pelo contrário. Seria um verdadeiro momento salvífico. Porque até 2008 o governo PS era, segundo os seus próprios critérios, um tremendo fracasso. Pelo menos, a crise revesteria os actos de uma gravidade que só as emergências conseguem gerar, e recolocaria o governo no centro da esperança de um eleitorado assustado e desorientado. Sobretudo, a crise internacional daria um pretexto do tamanho do mundo inteiro - estão todos "como nós, ou pior", o que não é inteiramente verdade, mas enfim - a tudo o que viesse a acontecer. Há uns dias referi-me à "paragem árida e feia" a que Portugal foi trazido. Essa paragem não é o ano 2009, toda a aridez e fealdade já lá estavam no início de 2008.
Outra coisa que me pareceu mais ou menos evidente, é que a oportunidade da crise - como diria Obama - para um governo falido seria esprimida como se não houvesse amanhã. Se a crise é que nos (governo) veio salvar, então é com ela e em torno dela que se tem de reconstruir o caminho da governação. Ora, isto acarreta um perigo enorme. Porque permite que o horizonte da crise internacional encerre as escolhas políticas de Portugal, quando toda a gente já percebeu que quando a crise internacional passar, a nossa muito portuguesa ficará. Esta cegueira nota-se particularmente na defesa cega que os apoiantes do governo fazem do Estado e da intervenção do Estado. Vou deixar de parte os disparates divulgados pela propaganda socialista, e que outros seres pensantes limitam-se a papaguear, sobre o PSD e o "Estado mínimo" ou sobre o neoliberalismo. São historietas para assustar criancinhas, mas que qualquer pessoa inteligente ignora. Quando falo da idolatria do Estado, refiro-me à tendência que se instalou nos últimos meses entre os socialistas para exortar à expansão do Estado, não por razões circunstanciais (a crise, o período de emergência), o que poderia ter algum mérito, mas de forma definitiva.
Num país onde as despesas do Estado chegarão aos 50% do PIB, onde metade da população vive directa ou indirectamente do apoio do Estado (cerca de 4 900 000, contando com pensionistas, desempregados, funcionários públicos, rendimento mínimo de inserção, etc.), com mais a chegar atendendo ao envelhecimento da população, onde há um ministério e uma burocracia a cada esquina, assusta-me que o outro lado moderado da política portuguesa opte pelo caminho da estatização da sociedade. O segredo do PS é estatizar a sociedade e fazer grandes obras públicas. Pelo caminho, rotula de neoliberalismo quem ousa contestar o plano, e acusa de ódio ao investimento público quem se atreve a criticar a sanidade e a oportunidade da coisa. Com o patrocínio do peculiar governador do Banco de Portugal, desvaloriza o endividamento externo, quando qualquer pessoa compreende que o ritmo de crescimento (ignoremos o nível) do endividamento português é o enredo das histórias financeiras de horror que se sucedem na América Latina.
É preciso continuar?